A importância dos Nordestinos para o desenvolvimento de São Paulo

A Fundação ABH trabalha em rede com os atores e agentes da periferia sul da cidade de São Paulo que atuam em prol do desenvolvimento comunitário da região.

Por meio de um diálogo horizontal, trocamos experiências e vivências a fim de enxergar o ponto comum que nos une e nos leva a novas descobertas, construção de conhecimentos e potencializa as nossas ações sempre em favor do desenvolvimento comunitário.

No entanto, sentimos a necessidade de conhecer mais a fundo a história das pessoas com quem nos conectamos diariamente e pudemos observar que boa parte delas vem da região Nordeste do Brasil, uma história antiga e que se confunde com a da própria construção de São Paulo.

Por isso, neste texto, vamos viajar no tempo para compreender o fluxo migratório de nordestinos para o sul e sudeste brasileiro a partir do ano de 1930, conhecer a história de pessoas que colocaram os seus sonhos na mala e vieram construir uma nova história na capital paulista.

 

Breve história da migração de nordestinos para o sudeste brasileiro

“Eu vendo meu burro, meu jegue e o cavalo, nóis vamo a São Paulo, viver ou morrer”. O verso da canção A Triste Partida do poeta e repentista cearense Patativa do Assaré, representa bem a realidade de milhares de migrantes nordestinos que foram obrigados a deixar a sua terra natal para sobreviver no sudeste do Brasil. Para compreender melhor essa história é preciso uma rápida viagem ao passado.

Após serem expulsos do Brasil, os Holandeses passaram a produzir açúcar e assim conquistaram o mercado Europeu. Tal fato resultou em uma grande crise na economia açucareira do país. Com isso, a região nordeste, principal produtora de cana-de-açúcar da época, deixou de ser o centro de riquezas e poder do país e o seu povo ficou desamparado, sobretudo aqueles que viviam nos sertões. 

Do outro lado do país, empresas multinacionais começavam a se instalar no sul e sudeste, iniciando o que chamamos de metropolização, processo que caminhava quase que ao mesmo tempo ao processo de urbanização e ampliou os investimentos nas principais capitais brasileiras da época, como Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e São Paulo.

Neste contexto, o forte crescimento da construção civil e de obras de infraestrutura tornou-se esperança para milhares de nordestinos que migraram, principalmente para São Paulo, em busca de uma oportunidade de transformarem suas vidas nas terras que prometiam prosperidade.

Esse grande fluxo migratório era também reflexo da redução do fluxo de imigrantes estrangeiros no país, sobretudo os europeus, por motivos como a expansão do mercado de trabalho no seu continente de origem, a suspensão de viagens atlânticas em decorrência da Segunda Guerra Mundial, entre outros. Os migrantes nordestinos surgem então como mão de obra substituta aos imigrantes europeus.

“Com a abolição da escravatura, o imigrante europeu veio substituir a mão de obra escrava do africano. Com a industrialização, migrantes brasileiros de diversas regiões do país, sobretudo do Nordeste, vieram substituir a mão de obra do europeu.”, explica o cientista político e antropólogo pernambucano Expedito Leandro Silva.

E assim a migração nordestina para o sudeste do Brasil passou a ser considerada o maior fenômeno demográfico do país.

 

São Paulo: uma grande esperança para os nordestinos

São Paulo recebeu um grande contingente de trabalhadores nordestinos entre 1930 e 1970. Entretanto, não há dados atualizados sobre quantos deles vivem atualmente na cidade.

O último Censo de 2010 aponta que pelo menos 2,3 milhões de nordestinos chegaram a São Paulo e que outros 1,8 milhão voltaram para sua terra natal na década passada. Ou seja, pelo menos 500 mil nordestinos e nordestinas vivem hoje na terra da garoa.

Dentre eles encontramos a pernambucana Genesia Batista, uma das muitas mulheres que nasceu e cresceu em meio à dura realidade do sertão nordestino. Ela enfrentou a seca percorrendo quilômetros de distância para buscar água, precisou trabalhar desde muito cedo para ajudar em casa após a morte precoce de seu pai e por isso não pode frequentar a escola. 

Casou-se muito jovem e, em 1970, aos 20 anos, veio para São Paulo. O distrito de Cidade Ademar, região periférica localizada no extremo sul da capital paulista, foi o primeiro destino do casal que morou em muitos outros lugares da zona sul paulistana, como Jardim Nakamura e Parque Santo Antônio, onde construíram a sua primeira casa própria.

A terceira das quatro filhas do casal, a professora Vanessa Batista, lembra da violência que atingiu fortemente a região do Parque Santo Antônio e seus arredores na década de 1990. “Eu passava por muitos defuntos no caminho para a escola”, conta.

Neste período, Genesia se separa do pai de suas filhas e compra uma casa no Jardim Flórida Paulista – um bairro mais tranquilo e afastado da região central do distrito do Jardim Ângela – deixando para trás um relacionamento abusivo e levando suas filhas para longe da violência local. 

Seu hoje ex-marido é um dos muitos migrantes nordestinos que trabalharam na construção das linhas do Metrô do estado de São Paulo. Os registros em sua carteira de trabalho confirmam a profissão, mas suas memórias hoje são muito frágeis para lembrar dos detalhes.

Já Genesia trabalhou por muito tempo como diarista, vendeu espetinhos de churrasco na frente de uma antiga casa de shows da zona sul paulistana e roupas de cama que ela comprava em Ibitinga, no interior de São Paulo. 

“Minha mãe fez de tudo um pouco para ter a paz que tem hoje”, comenta Vanessa, que destaca ainda o desejo da mãe de que todas as filhas se formassem na universidade. 

“O sonho dela era formar as filhas para que elas tivessem um futuro diferente do dela e ela fez isso com maestria. Todos nós estudamos em colégio e hoje todos nós temos um diploma universitário”, exalta a professora.

A história de Genesia se assemelha a da cearense Josefa Cabral, que chegou em São Paulo no ano de 1986, aos 19 anos. Junto dela veio seu marido, o pernambucano Lourinaldo Barbosa.

O casal morou a princípio na casa de uma parente no bairro de Moema, na zona sul, quando esta ainda não era uma região nobre e para se manter na metrópole mais populosa do país foram a luta e trabalharam em diversas áreas, um caminho comum aos milhares de nordestinos que saem de sua terra natal.

Josefa já trabalhou numa empresa do ramo de alimentação, vendeu uma famosa marca de leite fermentado e doces na porta do colégio em que sua filha estudou. Já Lourinaldo trabalhou por mais de 20 anos como porteiro.

A primogênita do casal, a fisioterapeuta Alessandra Almeida, conta orgulhosa que depois de muita luta e dificuldades, o casal conseguiu se estabilizar na cidade, são donos de uma pizzaria, também conquistaram a casa própria e vivem na região do Jardim Ângela, na zona sul da capital.

 

A saga do migrante nordestino no século XXI

O Nordeste brasileiro com certeza é bem mais desenvolvido hoje do que há 50 anos atrás. A região possui grandes universidades federais que se destacam no meio acadêmico e é a origem de muitos artistas, políticos e estudiosos de diversas áreas que levam o nordeste para o mundo.

Mas ainda assim há aqueles nordestinos que saem de sua terra natal para escrever uma nova história do outro lado do país, como fez o cearense Pedro Lopez que chegou em São Paulo em 2013, aos 23 anos de idade, com um objetivo certo: cursar a universidade.

“Vim para São Paulo em busca de um sonho, me formar em Rádio e TV e  trabalhar na área, porém, nós nordestinos sonhamos muito alto, sabia que não seria fácil, mas mesmo assim, sonhamos”, relata Pedro.

 

O jovem, hoje com 31 anos, conta que quando chegou na terra da garoa foi logo em busca de um trabalho, já que precisava pagar as contas e a mensalidade da faculdade.

“Ainda bem que existem os restaurantes, onde temos oportunidades de começar. Trabalhei como copeiro, limpando, fazendo comidas, entre outras coisas. Fui me aprimorando e subindo de cargos em algumas empresas. Hoje, sou gerente de restaurante e me dedico 100% ao que sei e faço”, se orgulha o jovem.

Pedro morou no Jardim São Luís e agora vive no Grajaú, ambos na região sul da capital, mas ainda não realizou o sonho de trabalhar na área em que se formou. “Infelizmente meu sonho está estacionado, que é seguir na área da comunicação. Mas ainda há esperança”, garante ele.

 

Os nordestinos, a periferia e a sociedade

A história dos nordestinos com São Paulo não é um romance. A exemplo dos pais de Vanessa, outros muitos nordestinos travaram uma jornada de muitas dificuldades, vivendo em regiões periféricas, com recursos e serviços precários, lidando com o preconceito e invisibilizados pela sociedade. 

Em entrevista à Agência Mural, o sociólogo José Carlos Alves Pereira diz que não é possível compreender a formação das periferias paulistanas e da região metropolitana do município a migração nordestina e pontua que São Paulo “não teria o mesmo tamanho, a mesma infraestrutura de urbanização que tem hoje” se não fossem os trabalhadores que vieram dos nove estados do Nordeste. 

A concentração dos nordestinos nas regiões periféricas se deu pelo fato de que, nestes locais, os preços dos aluguéis eram menores e eles não dispunham de muito dinheiro para alugar uma moradia em áreas mais centrais da cidade. 

Um levantamento realizado em 2011 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base no censo de 2010, apontou que o migrante nordestino tem a menor renda mensal da região metropolitana de São Paulo. Os pernambucanos, por exemplo, recebem em média R$903,20, em contrapartida imigrantes estrangeiros recebiam R$4.058,62 na década passada. Não há dados atualizados sobre o tema.

“São Paulo deve muito a mão de obra do nordestino”, ressalta o cientista social e antropólogo pernambucano Expedito Leandro Silva, que acrescenta que, apesar desse fato histórico, a importância do nordestino na construção da cidade vai além dos tijolos na parede, mas contempla também a política, literatura, música, comida, dentre outros aspectos cotidianos firmam a identidade nordestina no sudeste brasileiro.

“Muitas pessoas ainda têm essa imagem de que o nordestino atrapalha os outros, é pobre, passa fome. Até hoje tem uma imagem muito negativa. O Nordeste foi inventado, aqui no centro-sul, sob a ótica do atraso e da miséria”, destaca Silva.

 

Nordestinos e o país dos preconceitos

Infelizmente, o preconceito caminha lado a lado com diversos grupos da sociedade, como os nordestinos. Eles carregam a dor de terem suas características, sua cultura, seu sotaque, entre outros aspectos, violentados por uma parte das pessoas que não entendem as próprias origens.

O cientista social e antropólogo pernambucano Expedito Leandro Silva ainda lembra de uma situação que enfrentou logo que chegou no estado de São Paulo. Uma funcionária de um antigo jornal do interior perguntou o que ele fazia ali e por que não voltava para a sua terra, porém ele garante que nunca abaixou a cabeça para os preconceituosos.

Genesia Batista conta que também seguiu o exemplo de seu conterrâneo e nunca deixou que lhe destratassem por causa de suas origens. Josefa e Laurinaldo dizem que não lembram de algum episódio em que tenham sofrido com o preconceito, mas acreditam que talvez a falta de conhecimento tenha feito com que isso passasse despercebido.

Já Pedro Lopez relata uma situação abusiva e constrangedora que passou com um de seus professores em um ambiente que deveria ser de conhecimento.

“Acho que se perguntar a qualquer nordestino, sempre vem um episódio em mente. A maioria das vezes que sofri preconceito, foi na universidade, principalmente pelo sotaque, pelo modo de agir, pela “inocência”, mas o que marcou mesmo foi ouvir de um dos professores, que eu “deveria” mudar meu sotaque, pois assim do jeito que eu falava, não iria a lugar nenhum, não teria futuro aqui em São Paulo no ramo que eu estava estudando”, lembra o jovem.

Expedito Leandro pontua que todos precisam compreender o seu espaço na sociedade. 

“As pessoas, sobretudo os nordestinos, precisam ter consciência de que nós temos nossos direitos, podemos circular por onde quiser e não admitir o preconceito em hipótese alguma”, ressalta Expedito.

Apesar do preconceito e da falta de conhecimento de boa parte da população sobre as próprias origens e a riqueza da cultura do Nordeste brasileiro, os nordestinos são parte essencial de São Paulo! Além de ajudarem no desenvolvimento da cidade há séculos, continuam sendo a força motora dos dias de hoje.

É por esse e outros aspectos que a periferia sul é o território escolhido pela Fundação ABH, um terreno fértil em recursos naturais, com atores capazes, batalhadores e articulados que precisam ser mais respeitados e merecem uma melhor qualidade de vida.