A realidade do jornalismo negro na periferia sul de São Paulo 

A Fundação ABH nasceu do princípio de transformar a realidade dos moradores da periferia sul de São Paulo, fortalecendo a autoestima e o protagonismo local, a fim de ajudá-los  no alcance de seus sonhos.

Dentre as inúmeras ferramentas existentes, a Fundação ABH acredita que uma delas é a comunicação, que ao longo dos anos vem sendo bastante explorada nas quebradas a fim de dar visibilidade às demandas e ações que contribuem para o desenvolvimento comunitário local

Neste artigo, você conhecerá alguns coletivos independentes que atuam em prol do desenvolvimento comunitário da periferia sul de São Paulo e a história de jornalistas pretas da quebrada, que relatam os desafios encarados diariamente para conquistarem seu espaço profissional fora do território, mas mantendo vivas suas raízes.

A realidade do jornalismo negro no Brasil

O ano é 2023 e o jornalismo negro no Brasil ainda enfrenta inúmeras dificuldades para consolidar-se na mídia aberta, sendo o racismo institucional a maior delas.

Segundo o relatório Perfil Racial da Imprensa Brasileira, apenas 20,1% dos jornalistas negros estão presentes nas redações brasileiras. Dos 80% restantes 77,6% são brancos,  2,1% amarelos e 0,2% indígenas.

A maioria dos profissionais que não estão nos veículos tradicionais, encontram espaço nos sites de notícias de coletivos independentes. Atualmente, cerca de 40% dos jornalistas negros trabalham nestes veículos, seguido dos canais impressos com apenas 20%.

A pesquisa revela que 43% dos jornalistas negros enfrentaram racismo em sua trajetória, enquanto 35% afirmam que, por serem pretos ou pardos, a carreira é mais difícil; 85% das entrevistadas revelaram terem sido vítimas de misoginia na imprensa brasileira.

No entanto, ainda que a realidade seja cruel, nós da Fundação ABH, trabalhamos para gerar mais oportunidades aos jovens da periferia sul de São Paulo, fomentando iniciativas e articulando redes de apoio e formação para que eles se tornem protagonistas da sua própria história.

Dessa forma, em homenagem ao primeiro mês desde a morte da maior representante negra do jornalismo deste país, Glória Maria, entrevistamos duas jornalistas negras e periféricas que não apenas se inspiraram em Glória, mas em diversas personalidades jornalísticas para construírem suas carreiras.

80% do jornalismo brasileiro é branco

Conforme dados do IBGE, as pessoas negras representam 55,8% da população brasileira. Segundo os dados do Censo Demográfico de 2010, cerca de 37% dos habitantes da cidade de São Paulo se autodeclararam pretos. Nas periferia sul de São Paulo, o Mapa da Desigualdade aponta que as pessoas pretas ou pardas correspondem a 60,1% de seus moradores, índce 10,3 vezes maior do que o de Moema, região nobre da Zona Sul paulistana, que concentra apenas 5,8%.

Entretanto, no que se refere à imprensa, eles não são, nem de perto, a maioria. Segundo o Relatório Perfil Racial da Imprensa Brasileira:

  • 80% do jornalismo brasileiro é branco;
  • apenas 39% dos cargos gerenciais como direção, edição e edição-chefe são ocupados por pessoas negras;
  • Apenas 7,2% dos negros estão na TV aberta.

Ainda que o racismo seja alto, pelo menos no tópico gênero existe uma tímida igualdade; homens negros e mulheres negras representam, respectivamente, 45% e 54%, do total geral de pessoas pretas que ocupam cargos na imprensa brasileira.

E mesmo que estes números sejam baixos, é fundamental reconhecer que, para eles existirem, o jornalismo negro precisou se posicionar.Grandes nomes como Glória Maria, Luciana Barreto, Maria Julia Coutinho, Joyce Ribeiro, Diego Sarza, Heraldo Pereira e Marcio Bonfim trouxeram representatividade à televisão brasileira.

Jornalista há nove anos, Jordana Araújo relembra como foi encontrar Maria Julia Coutinho pessoalmente:

“Quando eu tinha 14 anos, a Maria Júlia Coutinho foi até o meu bairro fazer uma entrada da Rodovia Castello Branco. Eu estava no caminho da escola quando a vi toda concentrada para entrar no ar. Passei o dia feliz por vê-la de perto. Aos 25 anos tive contato com o trabalho do Luiz Teixeira na BandNews FM e foi enorme saber que um cara que tinha a mesma origem que a minha estava realizando um trabalho enorme em um dos maiores Grupos de Comunicação do Brasil. Aquilo me impulsionou absurdamente. O mesmo aconteceu quando eu vi a Cynthia Martins, Rafaelle Seraphin, Juliane Santos e tantas outras colegas que fui conhecendo ao longo do caminho. A representatividade nesses espaços importa, porque ela nos alcança, nos inspira e nos impulsiona.”

Dessa forma, podemos perceber que a representatividade é fundamental para impulsionar crianças e adolescentes a correrem atrás de seus sonhos, ainda que os obstáculos sejam muitos.

Coletivos independentes mostram a força do jornalismo negro nas periferias

De acordo com a pesquisa Mapa do Jornalismo Periférico: passado, presente e futuro, produzida em 2019 pelo Fórum de Comunicação e Territórios de São Paulo, a cidade de São Paulo conta com  97 iniciativas de comunicação periférica. Desse total, 50% estão localizadas na periferia sul de São Paulo.

No geral, esses coletivos são destinados à disseminação da cultura jornalística na região através da realização de oficinas, pesquisas e debates, que possibilitam o desenvolvimento do senso crítico e o engajamento político e cultural dos agentes comunitários.

Thiago Borges, integrante do coletivo Periferia em Movimento, explica a importância destes grupos para a transformação social: “Esses coletivos cumprem um papel de formação e informação da população, com complemento, conexão e contraponto às narrativas hegemônicas”.

A jornalista Luiza Santana reflete a influência da comunicação desde o período escolar e alerta sobre o uso da tecnologia em demasia: “Lembro que, quando mais nova, na escola tinha um projeto pra ler, incentivar e ajudar as crianças a gostarem daquilo; eu participei e confesso que até hoje sinto falta. A tecnologia tem sido uma grande aliada da comunicação quando bem usada, mas, ao mesmo tempo, uma grande vilã. As pessoas perderam o hábito da leitura, o qual é de extrema importância. Esses projetos podem mostrar a importância do jornalismo pras novas gerações e mostrar como eles podem ter voz dentro da sociedade, assim como eu me sentia distante e achava que era impossível.”

Nesse sentido, conheça alguns dos coletivos de comunicação que atuam na periferia sul de São Paulo e como eles trabalham para transformar a realidade de crianças e adolescentes periféricas.

Desenrola e Não Me Enrola

Com sede no distrito do Jardim Ângela, o coletivo Desenrola e Não Me Enrola foi fundado como um blog em 2013. Hoje, como um site de notícias, aborda temas como moradia, trabalho e convivência na periferia sul.

Em 2021, o coletivo criou o programa de inclusão ‘Você Repórter da Periferia 2.0’, em que o objetivo é formar equipes para a produção de conteúdo do site. Todos os participantes recebem uma bolsa-auxílio para participarem do processo.

Além disso, o time é apoiado pela Internews Europe, que fornece auxílio técnico e financeiro para comunicadores independentes de países emergentes. Vale ressaltar que o apoio aconteceu em razão do coletivo ter prestado informações à comunidade, em meio a COVID-19.

Nós, Mulheres da Periferia

O coletivo Nós, Mulheres da Periferia é um site de notícias e opinião formado por mulheres negras e periféricas com o objetivo de estimular e espalhar discussões de classe, cor, gênero e território a todo Brasil.

Um site de mulheres feito para mulheres, o objetivo da equipe é fornecer conteúdos de comportamento e análises do cotidiano, visando fomentar o empoderamento feminino.

A ideia do coletivo surgiu em 2014. Dois anos antes, as fundadoras escreveram o artigo ‘Nós, mulheres da Periferia’ para o jornal Folha de São Paulo, narrando a dificuldade que mulheres negras e periféricas enfrentam diariamente.

Devido à repercussão, diversas mulheres enviaram cartas e mensagens às escritoras, contextualizando temas raciais e territoriais das periferias de São Paulo e, assim,  estimulando a criação do coletivo.

Escola de Notícias

Formada por jovens moradores de Campo Limpo, na periferia sul da cidade de São Paulo, a Escola de Notícias nasceu em 2014 com o objetivo de impulsionar o acesso e a ampliação de direitos sociais, culturais e econômicos da juventude através das tecnologias de informação e comunicação (TICs). 

Seguindo os princípios de um negócio social, a Escola de Notícias oferece serviços nas áreas de comunicação e formação, reinvestindo os recursos na Escola Comunitária de Comunicação (ECOMCOM), que oferece formações técnicas de comunicação e de desenvolvimento pessoal, processos de mentoria profissional e oportunidades de geração de trabalho e renda para moradores ou estudantes de escolas públicas e particulares da região do Campo Limpo e Taboão da Serra.

Periferia em Movimento

Os jornalistas Aline Rodrigues, Sueli Reis Carneiro e Thiago Borges fundaram a Periferia em Movimento em 2009 com o objetivo de gerar e distribuir informação dos extremos ao centro da cidade de São Paulo.

Nascidos nas periferias da capital paulistanas, os jovens comunicadores criaram essa produtora independente de Jornalismo de Quebrada “que tem como missão fazer um jornalismo sobre, para e a partir das periferias, em nossa complexidade, para ocupar espaços que sempre nos negaram e garantir o acesso a direitos”.

Manda Notícias

O Manda Notícias foi criado em 2020 pela jornalista Gisele Alexandre com o intuito de que nasceu para combater as fake news disseminadas no período da pandemia de Covid-19. 

O projeto começou com o compartilhamento de conteúdos de áudio e texto, acessíveis para todos, através do WhatsApp, mas, atualmente, é um veículo que traz diferentes tipos de conteúdo sobre o território e pode ser acompanhado tanto nas redes sociais quanto nas principais plataformas de streaming do mundo. 

Além desses veículos e coletivos, podemos citar a Agência Mural – Agência de Jornalismo das Periferias, que reúne entrevistas, divulga eventos, e traz informações das periferias paulistanas; o jornal Embarque no Direito, que fala sobre as periferias e favelas e traduz direitos, numa linguagem acessível para todos; entre outros.

Jornalistas negras e periféricas compartilham experiências

O objetivo da Fundação ABH é transformar a realidade dos moradores da periferia sul por meio de ações que contribuam com o desenvolvimento comunitário, valorizando o bem-estar, o empreendedorismo, a economia local, a cultura e a educação.

Pensando nisso, entrevistamos duas jovens jornalistas: Jordana Araujo e Luiza Santana.

Jordana atualmente vive em Osasco, está concluindo o curso de comunicação, mas já atua como repórter na Rádio BandNews FM. Já Luiza Santana, nasceu, cresceu e se graduou na região de Interlagos, na zona sul de São Paulo, e trabalha como produtora/coordenadora de transmissão esportiva na NSports e narradora na RP2.

A comunicadoras toparam dividir suas experiências na área, os desafios que enfrentaram e enfrentam, como é ser uma mulher preta no jornalismo e muito mais com o objetivo de incentivar e auxiliar na formação de outros jornalistas negros e periféricos da região sul de São Paulo.

Como a presença de Glória Maria e outros jornalistas negros na TV brasileira te empoderou como mulher negra e jornalista?

Jordana:Glória Maria foi fundamental não só para que eu pudesse me tornar jornalista, mas para a minha autoestima enquanto mulher preta e periférica. Ligar a TV no domingo à noite e encontrar uma mulher preta apresentando um dos maiores programas jornalísticos do Brasil era muito encorajador e fortalecedor. Nos dava a sensação de que era possível. A minha trajetória não foi nada fácil, por muitas vezes escutei que não conseguiria e que ela era exceção. Lembro que uma vez eu respondi que ela não era exceção, mas sim motivação.”

Luíza: “Trazendo pro lado do jornalismo esportivo, a Glória cobriu Copa do Mundo, Jogos Olímpicos e , hoje, aos poucos, temos mais mulheres tendo oportunidade em eventos grandes como esses e que ainda são ocupados por uma grande presença masculina. Mas, na época dela, eu penso o quanto ela teve que se impor e mostrar a que veio. Glória foi uma mulher preta que conquistou respeito e ocupou um espaço muito importante na maior emissora do país; ver a Glória era se sentir representada, era saber que eu posso estar ali também, sabe? Que não é impossível. Hoje eu tenho a Karina Alves no jornalismo esportivo, é a minha referência.”

Quais os desafios que você encontrou/encontra por ser uma jornalista negra e periférica?

Jordana: “O sistema. Ele é programado para não nos deixar vencer enquanto pessoas pretas. Quando você é mulher preta, mãe e periférica, ele vai fazer de tudo para te destruir. Para alcançar o jornalismo eu fui babá, vendedora, arquivista, recepcionista, auxiliar de caixa, auxiliar administrativo, assistente administrativo, fiquei um longo período desempregada também e trabalhei por muitos anos de forma voluntária com jornalismo, me dividindo em três jornadas de trabalho para ter uma oportunidade. Isso me causou uma série de consequências físicas e psicológicas, porque em todos esses espaços eu sofri algum tipo de violência relacionada à minha condição de mulher preta, mãe e periférica. Tive que trabalhar triplicado muitas vezes e ainda me privar de algumas coisas essenciais para quem quer ser jornalista por falta de tempo. Isso me deixou para trás em vários momentos da caminhada, tirou a minha confiança e foi gatilho para que eu pensasse em desistir, por ouvir que me faltava uma série de coisas, mas na medida que eu tive esses desafios também encontrei acolhimento nos nossos. Pessoas incríveis que precisaram ralar tanto quanto eu, que entenderam as minhas dores e me ajudaram a continuar.”

Luíza: “Olha, eu tive muita sorte de contar com o apoio dos meus pais nesse caminho e não posso reclamar, eles sempre acreditaram que eu conseguiria. Mas eu lembro que quando me perguntavam o que eu queria fazer e eu dizia jornalismo, fui muito questionada e me falavam que seria muito difícil e se eu tinha certeza, se não era melhor algo mais fácil, até mesmo pra pagar. Pois pra aprender um “bom jornalismo” eu teria que pagar muito caro e que talvez o ensino público que eu tive não iria ajudar tanto, sendo que sempre dependeu do quanto eu queria aprender e saber mais.”

Por fim, as entrevistadas dão dicas para futuras jornalistas negras e periféricas:

Jordana: “A nossa caminhada não é e não será fácil, mas vocês não estarão sozinhos. A gente sempre vai ter uns aos outros. Outra coisa que eu gostaria de reforçar: se cerquem de referências pretas, não só no aspecto profissional, mas no pessoal também. Estar ao lado de pessoas que nos entendem e promovem o acolhimento ajuda na caminhada. Eu sou o resultado do meu corre, mas também de muito acolhimento que recebi dos nossos.”

Luiza: “Não desista, você não é diferente ou inferior a ninguém. Vai ter (e muitos) momentos que tudo vai parecer difícil e vai dar vontade de desistir. Mas segue, te garanto que no final vai dar certo, você vai conquistar seu espaço e quem vai estar lá fazendo as pessoas se sentirem presenteadas dessa vez, mostrando que podem, vai ser você.”

Percebemos que a força negra está em todos os lados, mostrando que veio para quebrar barreiras, conquistar o topo e crescer. Para isso, é fundamental o investimento em políticas públicas e na criação de coletivos e oficinas para a disseminação cultural e de aprendizagem, visando oportunidades a longo prazo para jovens e adolescentes periféricos.

Por isso, ao longo de sua jornada, a Fundação ABH já investiu em projetos de diversas áreas, dentre elas a comunicação, como o coletivo Desenrola e Não Me Enrola, no distrito do Jardim Ângela; a Escola de Notícias, no Campo Limpo, e o podcast Manda Notícias, no Capão Redondo. Graças a esses e outros projetos e iniciativas, a Fundação ABH já impactou mais de um milhão de pessoas desde 2014.

Por isso, contamos com a sua ajuda para continuar colaborando com o crescimento dos nossos jovens. Acesse o site e faça a sua doação.

Vamos trabalhar juntos para o desenvolvimento de novos jornalistas negros da periferia sul de São Paulo.