O poder do trabalho em rede na periferia

A atuação em rede é um dos pilares do fazer da Fundação ABH, que apoia o desenvolvimento comunitário da periferia sul de São Paulo por meio da construção de uma rede que se comunica de forma horizontal e se concentra nos recursos, materiais, humanos e financeiros, que o território possui ao invés de exaltar aquilo que ele carece.

Neste artigo, vamos compreender a importância do trabalho em rede, seu poder transformador e como essa conexão entre talentos, ativos e investidores pode potencializar a comunidade tomando como exemplo o nosso Comitê Construtivo, que reúne atores e iniciativas do território para cocriar soluções sustentáveis para a PerifaSul.

Como a Fundação ABH desenvolve um trabalho em rede?

A Fundação ABH trabalha o desenvolvimento local a partir de quatro etapas que têm como objetivo criar um ciclo virtuoso de fortalecimento do trabalho em conjunto com e da comunidade.

Na primeira etapa, os moradores e atores do território têm vivência e legitimidade para identificar e pautar problemas e prioridades que necessitam ser trabalhadas na comunidade dentro de toda a sua pluralidade.

Na sequência, a rede se concentra nos ativos e recursos locais, sejam eles materiais, financeiros ou humanos, como talentos, conhecimento, dinheiro, tempo e outros, que são conectados em prol dos avanços do território.

Com isso, a comunidade se torna a protagonista do próprio processo de transformação, conquistando autonomia e dialogando com investidores de maneira horizontal.

Desta forma, atores externos dispostos a investir no território se somam à rede, fazendo junto, qualificando, oferecendo recursos, conhecimento, tecnologia, coinvestindo, empoderando os atores locais, gerando impacto e potencializando as ações da comunidade.

O Comitê Construtivo da Fundação ABH

Um exemplo da aplicabilidade e valorização do trabalho em rede é o nosso Comitê Construtivo, criado para fortalecer nossa atuação junto aos atores locais.

O grupo, formado por atores da periferia sul de São Paulo, que atua em diferentes áreas, realizou seu primeiro encontro em maio de 2022 e traçou objetivos para, de forma colaborativa, criar e construir ideias e soluções sustentáveis que gerem impacto e transformem o território em que atuamos.

As primeiras metas estipuladas pelo Comitê Construtivo foram as seguintes:

  • Desenhar, de maneira colaborativa, uma teoria da mudança para a atuação do grupo no território;
  • Criar um “fundo” que, com o tempo, se transforme em um fundo patrimonial territorial e comunitário para fomentar iniciativas e o desenvolvimento do território;
  • Estabelecer regras de utilização e de governança desse “fundo”, para que seu trabalho se dê de maneira transparente, gerando confiança tanto para iniciativas locais como para investidores;
  • Tornar o comitê protagonista na gestão desse “fundo”, tomando decisões conjuntas para sua perpetuação e crescimento.

A partir daí tivemos 12 encontros, tanto presenciais quanto virtuais, para discutir as ideias, compartilhar conhecimento, inclusive com a presença de especialistas que explicaram, de forma didática, como atuam as fundações e institutos comunitários, além de falar sobre a constituição jurídica, estatuto, governança e diferenças entre fundações e as demais organizações da sociedade civil assim como cases de fundos em operação no Brasil.

Conversamos com alguns membros do Comitê Construtivo que relataram como foi viver essa experiência. Diane e Naiara Padial, do e-Bairro, acharam excelente a proposta e destacaram que foi esclarecedor contar com diferentes pontos de vista sobre o tema. Ambas destacam a importância de participar desse processo de atuação em rede em prol do território.

“Ao  meu  ver, o  trabalho em rede cria pontes que possibilitam oportunidades de trabalho, de estudos, contribui com ações sustentáveis, pois ajuda que doações e desapegos cheguem a quem precisa, amplia o alcance de ações e permite grandes aprendizados, creio que o impacto maior é o boca a boca, a indicação de trampos e pessoas”, comentou Naiara.

Diane acrescenta que, a partir do trabalho em rede, as vinculações de cada um dos atores envolvidos no processo impactam e ajudam no todo, ou seja, promove o fortalecimento de cada um através do todo, potencializando as conquistas e facilitando os caminhos.

Sidineia Chagas, do Perifeminas, que promove o esporte em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, também faz parte do nosso Comitê Construtivo e acredita que a união dos atores locais potencializa o desenvolvimento da periferia e possibilita a expansão das ações para outros territórios.

“Os artistas, coletivos e instituições buscam conexões para fomentar as causas que defendem. Quando juntos se unem e formam uma rede, os propósitos se alinham e a realização dos objetivos se concretizam com mais potência. Cada bairro tem sua demanda e unindo forças conseguimos contribuir também para o desenvolvimento local das nossas comunidades e dos demais territórios”, disse Sidineia.

Outras redes que atuam na periferia sul de São Paulo

As periferias brasileiras são um campo fértil para a atuação de redes que se movimentam em prol de diversos objetivos, através de diversos segmentos, mas sempre com o propósito de transformar, promover e desenvolver o território, especialmente na periferia sul de São Paulo.

NuCapão

Um dos muitos exemplos é o NuCapão, um ateliê de residência artística,  localizado no Capão Redondo – daí a origem de seu nome -, que surge para suprir a baixa quantidade de espaços e equipamentos públicos voltados para cultura e produção artística na região.

Em funcionamento desde 2018, o local já recebeu mais de 50 artistas que realizaram oficinas, debates, exposições, shows e outras intervenções artísticas periódicas, que estimulam o fazer artístico e a economia criativa da periferia sul da capital paulista.

Artista residente do NuCapão, Muller Silva, conta que a iniciativa recorre a diversos processos e parcerias com outros produtores e articuladores do território para se manter ativa.

“Nós escrevemos projetos para diversos editais. Atualmente estamos com a verba do VAI modalidade II e estamos no processo de aprovação de uma emenda parlamentar por parte do Vereador Donato, do PT. Além disso, também realizamos eventos culturais em parceria com outros coletivos, onde conseguimos arrecadar um pequeno valor com a venda de bebidas e entradas. Isso nos ajuda a custear as contas de internet, água e luz e também parte do aluguel”.

O comunicador afirma que a grande rede que atua, tanto em prol do NuCapão quanto de outras iniciativas do território, gera impacto através do compartilhamento de recursos, conhecimento e networking de saberes e pessoas importantes que unem todos os seus esforços para fazer o movimento acontecer tanto de forma ativa, quanto passiva.

“De forma ativa, acionamos coletivos e parceiros para utilizar o espaço e realizar atividades em conjunto ou de forma independente, sendo um evento exclusivo de um coletivo externo, por exemplo. De forma passiva, temos parceiros que colaboram para o crescimento da rede e de outras formas mais burocráticas. O Bloco do Beco, por exemplo, está nos ajudando com a escrita e aprovação do projeto por meio da emenda parlamentar, uma vez que não temos CNPJ ainda”.

Bloco do Beco

O Bloco do Beco é uma iniciativa que, há duas décadas, promove a diversidade, a valorização da cultura periférica e do carnaval de rua através de seu tradicional bloco, que dá nome ao coletivo, e que reúne sambistas e artistas na periferia sul de São Paulo, especialmente no distrito do Jardim São Luís.

Além de um espaço cultural consolidado, que acolhe grupos culturais, movimentos artísticos e realiza eventos de todos os tipos, o Bloco do Beco desenvolve muitas ações em rede em prol do desenvolvimento do território.

Uma destas ações é o Bairro Educador, que integra atividades educacionais, sociais, culturais e econômicas, que formam, promovem e desenvolvem moradores do territórios de todas as idades.

Com o sonho de transformar a região em um lugar ainda melhor para se viver, o Bairro Educador mobiliza moradores, escolas, UBSs, comércios e outros equipamentos e espaços culturais, numa verdadeira atuação em rede, gerando impacto cultural, econômico, ambiental e educacional na periferia.

O Projeto Comunidade Leitora é um dos exemplos de ações desenvolvidas pelo Bairro Educador, que tem como ideia desenvolver campanhas que incentivem a doação de recursos que serão revertidos na formação de jovens monitores de leitura, que farão mediações com outras crianças e adolescentes do território.

Esse movimento aconteceria através de uma rede de apoio entre estabelecimentos, como restaurantes que doariam cupons que valessem alguns de seus pratos. O Bloco do Beco cria uma campanha na qual moradores da região, amigos e outros vão concorrer aos cupons em troca das doações que serão aplicadas na capacitação de jovens monitores de leitura.

O gestor e articulador cultural do Bloco do Beco, Luiz Cláudio de Souza, que também é membro do nosso Comitê Construtivo, acredita que só é possível realizar um trabalho legal e efetivo em uma comunidade gigante, como é a periferia sul da capital paulista, se isso for pensado em rede com organizações de diferentes áreas para reunir recursos e experiências a fim de atingir o maior número de indivíduos.

“Aqui, prezamos por essa virtude e estamos construindo muitas pontes com a saúde, com a educação e com outras instituições que atuam no território para alcançarmos o máximo de pessoas possíveis com as nossas ações”, disse Luiz.

Fórum de Culturas Zona Sul e Sudeste

O Fórum de Culturas Zona Sul e Sudeste é resultado de uma longa jornada de atuação em rede que começou na periferia sul de São Paulo. A Produtora da Brava Companhia e articuladora cultural, Kátia Alves, contou o passo a passo da articulação entre os coletivos do território e de outras periferias que resultou na construção dessa grande rede.

“Em 2003, a Brava Companhia foi convidada a participar da Rede São Luís, que a princípio nasceu como uma rede que agregava diferentes coletivos, não só de arte e de cultura, mas coletivos de organizações sociais do território e a partir desse ajuntamento de pessoas nós ocupamos com outros coletivos culturais o Sacolão das Artes, um espaço que acolhia diversas linguagens artísticas”.

A partir dessa ocupação, a Brava Companhia foi fazendo outras conexões e outras redes foram se juntando com o objetivo de ocupar um espaço público a fim de transformá-lo em polo de cultura e de diversas linguagens artísticas.

Essas conexões geraram, em 2014, a Rede Popular de Cultura M’Boi e Campo Limpo, que se uniu a outras redes da cidade de São Paulo para lutar pela aprovação da Lei de Fomento às Culturas das Periferias. De acordo com Kátia, esse trabalho em rede é fundamental e estruturante para as ações de muitos grupos e coletivos e foi essencial para a aprovação dessa lei.

“Durante quase quatro anos, algumas pessoas de diferentes coletividades se reuniram semanalmente justamente para estudar e entender esse orçamento da cidade e como a gente conseguiria ter a argumentação para que uma lei fosse aprovada com o argumento de que existe recurso, mas que ele está centralizado, então a gente precisa descentralizar para que chegue nas pontas, nos territórios onde estão os coletivos”, detalhou a articuladora cultural.

Esse trabalho em conjunto floresceu e gerou o Fórum de Culturas Zona Sul e Sudeste, uma rede ainda maior que conecta não apenas as periferias de São Paulo, mas de toda a região sudeste.

A rede oficializou-se como Fórum durante a pandemia, quando os coletivos participantes realizaram alguns encontros de formação e alinhamento de retomada, para traçar diretrizes de como o Fórum iria atuar e funcionar.

“Hoje, o Fórum de Culturas Zona Sul e Sudeste é composto por 133 integrantes. Desses 133, cada um representa uma coletividade, então o fórum na verdade é um ajuntamento de coletivos e artistas, mas que tem uma representação de diferentes territórios”, concluiu Kátia.

Rede São Luís

A Rede São Luís é um movimento que promove o empreendedorismo periférico na periferia sul da cidade de São Paulo. Com base na economia criativa e solidária, a Rede utiliza recursos diversificados para apoiar o empreendedorismo e ações de desenvolvimento local de diferentes segmentos, como música, saúde, esporte, culinária, moda, educação, audiovisual, entre outros.

A Rede acredita na implantação de um sistema de trabalho colaborativo movimentado pelos talentos do território, que gere oportunidades de trabalho, além de renda, para os coletivos do distrito do Jardim São Luís, bem como e pretende ser um exemplo concreto de que é possível trabalhar para gerar tanto renda quanto consciência social.

Rede de Educação Cidadã (RECID)

A Rede de Educação Cidadã (RECID) acontece a partir da articulação entre atores sociais, organizações e movimentos populares dos quatro cantos do Brasil que abraçam a missão de desenvolver um processo sistemático de sensibilização, mobilização e educação popular da população brasileira, especialmente de grupos historicamente vulneráveis, através de diferentes ações que ocorrem nos estados e macrorregiões do país.

Dentre as ações da RECID estão encontros e oficinas de capacitação de educadores populares em diversos temas, como a história e as causas da exclusão social e econômica no Brasil, direitos sociais e humanos, metodologia da educação popular, bem como organizam equipes de educadores populares nos estados e Distrito Federal para ampliar localmente a formação e a mobilização social.

Além disso, a RECID desenvolve o Programa Nacional de Formação e suas ações nacionais e estaduais, como jornadas pedagógicas, sistematização de experiências, cirandas de educação popular e comunicoteca, com o intuito de fortalecer o processo de formação comunitária e de base.

Rede LiteraSampa

A Rede LiteraSampa é formada por 18 bibliotecas que estão presentes e atuam em quatro municípios: Guarulhos, Mauá, Santo André e São Paulo, promovendo ações afirmativas voltadas para a formação de leitores e democratização do acesso ao livro, a leitura, literatura e bibliotecas como direito humano.

Tendo como base uma gestão compartilhada, as diversas organizações pertencentes a rede mantém oficinas de mediação de leituras, bate-papo com autores, concursos literários, saraus, além de se articularem com parceiros locais, que partilham a crença de que a leitura literária pode transformar vidas.

Uma das instituições que compõem a rede é a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, localizada em Parelheiros, distrito localizado no extremo sul da cidade de São Paulo, que atua desde 2009 na região.

O biblioteconomista Rafael Simões, que também é um dos fundadores da Caminhos da Leitura, conta como a presença da biblioteca transformou um pouco da realidade local e fez surgir novas redes dentro do território.

“A nossa região antes da existência da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura era considerada uma região que só havia morte, violência de todos os tipos, longe de tudo e de todos, entretanto com as atividades realizadas na Caminhos da Leitura e a vinda de pessoas de outros locais do Brasil e do mundo essa visão de ter somente coisas ruins foi mudando”, explicou Simões.

Rafael acrescenta que além do Direito à Leitura, a biblioteca trabalha com a promoção dos direitos humanos, o que amplia muito mais a visão da atuação comunitária local. “A biblioteca não apenas “empresta e recebe livros”, ela tem enraizamento comunitário, que é estar enraizada em sua comunidade”.

Como exemplo, o biblioteconomista cita uma situação que ocorreu em 2014, quando estudantes meninas foram alvo de violência moral nas escolas públicas de Parelheiros e Grajaú através de listas que continham os nomes das garotas mais “vadias” das escolas. A repercussão foi tanta que adolescentes chegaram a se suicidar pelo constrangimento a que foram submetidas.

“No bairro Barragem, bairro onde alguns dos articuladores da Caminhos moravam, muitas meninas entraram em depressão, com isso, foram procuradas para conversar, mas foram suas mães, tias, vizinhas entre outras que nos procuraram e relataram sofrer violência doméstica, com isso criou-se grupos de conversas e a partir daí o projeto Sementeiras de Direito”.

Simões conta que o projeto Sementeiras de Direito levou especialistas, advogadas, entre outras pessoas que entendem do assunto para apresentarem outros caminhos e possibilidades para as mulheres do território. Esse movimento criou raízes e gerou outros dois projetos.

O primeiro foi o Centro de Excelência em Primeira Infância, “que cuida de crianças de 0 a 6 anos, que também é uma faixa etária que sofria muita violência familiar em nossa região por causa dos pais e responsáveis terem que trabalhar fora e cumprir tarefas doméstica e só ter o contato com a criança muitas das vezes quando ela ‘apronta’”.

O segundo é o Amaras Cozinha, desenvolvido por mulheres que fazem alimentação saudável a partir de insumos vindos de produtores orgânicos da região de Parelheiros e que geram renda para elas que produzem e vendem marmitas, buffet, entre outras opções.

“A rede de bibliotecas comunitárias é tudo isso”, resumiu Rafael, que concluiu dizendo que a atuação da LiteraSampa é ainda maior, e que citou somente alguns exemplos de sua vasta produção, tanto na periferia sul de São Paulo quanto fora dela.

Os benefícios da atuação em rede

A atuação em rede tem foco na construção colaborativa a partir de parcerias com atores e iniciativas que possuem interesses comuns e competências complementares, em que os limites de confiança, credibilidade e ética são sempre definidos e respeitados.

A ideia é que essas redes de apoio e as iniciativas, coletivos e movimentos apoiados por elas perdurem, continuem impactando positivamente o território e que as suas ações sirvam de exemplo e sejam replicadas em outras comunidades.

Entretanto, esse é um cultivo minucioso, mas que gera raízes sólidas se feito da maneira certa, como acontece com o bambu chinês.

Assim como a história do bambu chinês, nos primeiros anos do desenvolvimento territorial de comunidades há muito trabalho de articulação, formação de redes de cooperação e trabalho, formação do senso de comunidade, compreensão das necessidades locais, desenho do sonho para o território e uma série de atividades que são “invisíveis” para quem vê de fora mas são cruciais para o fortalecimento de relações, compreensão dos objetivos comuns, empoderamento dos moradores, conhecimento de direitos e potencialidades, conhecimento dos ativos locais, compreensão de como cada um pode contribuir para o desenvolvimento planejado.

Esse processo requer flexibilidade para curvar-se sempre que necessário, adaptar-se a novas situações, experimentar algo inédito ou tentar algo desafiador e muita força e persistência para continuar. É uma rede interna de relações e planos que dão uma base sólida para que a comunidade se desenvolva com mais autonomia, velocidade, de maneira mais planejada e gerando maior impacto quando todo esse trabalho que foi semeado possa crescer e se desenvolver de maneira cooperativa e consistente!

Ficou curioso para acompanhar os próximos passos e atitudes dessa corrente do bem? Fique ligado nos nossos canais de comunicação para acompanhar a atuação do nosso Comitê Construtivo. Aproveite e apoie a Fundação ABH para possamos ampliar essa rede e gerar ainda mais impacto na periferia sul de São Paulo.